edição nº 8 da Revista Samuel, que vai às bancas nos próximos dias, traz na seção 'Vale a pena ler de novo' uma reportagem de 2005 explicando a relação entre a Igreja Católica e ditadura argentina. Parte do texto, você pode ler abaixo. A íntegra do texto, está disponível na versão impressa da revista.]


Após a renúncia de Bento XVI, o conclave terminou com a escolha do argentino Jorge Mário Bergoglio, de 76 anos, como o novo papa; no país do sumo-pontífice, outros cardeais da Igreja Católica já tiveram relações com a ditadura.




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Transferência era uma palavra temida, que todos queriam expulsar de seus pensamentos.

Faltavam três semanas para que o inverno acabasse. As noites, porém, eram frias, mas nas horas de sol pressentia-se tempo morno iminente, como um bom presságio depois de tantos meses difíceis. Havia sido dito que a ausência duraria até o final do mês. Alguns tinham avisado a seus familiares que por várias semanas eles não poderiam telefonar-lhes nem visitá-los. Nunca tinham saído em grupo anteriormente e a novidade era inquietante, ainda que não o dissessem.  No porão e no sótão do refeitório dos militares que deixavam para trás, tinham tido tempo para estreitar amizades. O vínculo era recente, porém intenso, cimentado pela experiência limite que haviam compartilhado, cuja conclusão era incerta.
Dessa vez não houve chamadas individuais para selecionar quem partiria nem os puseram na fila do corredor de azulejos brancos que levava à enfermaria onde se aplicavam as vacinas. Quando o último deles embarcasse no ônibus, o refeitório dos militares ficaria vazio, para que pudessem terminar as refeições e confundir os membros da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que chegariam com planos precários, porém precisos.
O banheiro seria completamente reformado e trocariam a pia na qual se lavavam os pratos. Uma bancada de mármore seria colocada, com placas de aço inoxidável, e um espelho de ponta a ponta, que daria ao lugar um aspecto menos lúgubre. Os quartos deveriam ter aspecto de escritórios. As paredes divisórias com argolas embutidas no chão seriam retiradas. A escada que ligava o porão ao sótão seria fechada.
O veículo pegou a avenida paralela ao rio e rumou em direção ao norte. Com suas roupas informais e suas bolsas esportivas, podiam parecer despreocupados, como tantos grupos de homens e mulheres jovens em uma saída de excursão. A prática de fraude e mascaramento não lhes era desconhecida. Um dos poucos que tinha mais de quarenta anos era alto, magro e encurvado como um cão galgo e usava óculos com lentes grossas. Os demais davam a impressão de pertencer a um grupo de estudantes universitários tocando seus instrumentos e cantando pelas ruas durante a primavera.
Não devem ter levado mais de meia hora para chegar até a sentinela da estação naval. Os guardas já terão identificado o veículo antes de autorizar a passagem. Outros chegaram ao mesmo lugar em vários carros, com vendas nos olhos.
A balsa da Prefeitura na qual subiram era de madeira, como as embarcações que transportam passageiros entre as ilhas, mas os assentos tinham sido removidos. Viajavam jogados no chão, entre bolsas, caixas com mercadorias, rádios e armas. A barca rumou pelo rio Tuyú-Paré em direção a Chañá-Miní. Esses nomes, que conheceriam mais adiante, não lhes significavam grande coisa. Alguns acreditam que a viagem durou mais de meia hora; os mais precisos lembram-se de uma hora e meia. A monotonia da água densa e marrom era atenuada ao longo do trajeto por casas com nomes inesperados, que a velocidade lenta permitia decifrar, apesar do estado em ruínas das placas, com a tinta carcomida pela umidade e pelo tempo. A burguesia liberal do século 19 batizou de Tigre essas paragens, um tributo ao Tigris mesopotâmico. Somente os habitantes dessas ilhas podem diferenciar cada um dos 350 rios, córregos e canais em que se ramificam. Um século e meio atrás, Domingo Faustino Sarmiento descreveu a forma das ilhas como “a mais detalhada e indescritível”, na qual “a superfície é uma ilusão, não é terra tudo o que parece nem pode se saber de antemão se o que existe é fértil”.
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Detalhe da Capela Sistina, onde os 115 cardeais estiveram confinados para escolher o novo papa

O cais de madeira onde atracaram não tinha nada de especial. Tampouco a casa, para onde caminharam alguns metros pelo chão de madeira de tábuas desgastadas e pelo caminho que adentrava na terra úmida entre a vegetação que verdejava.
A construção tinha uns oitenta anos. Nada a diferenciava das casas típicas do delta do Paraná, com telhas de zinco para escoar as frequentes chuvas, pisos, paredes e divisórias de madeira, tudo assentado sobre palafitas que elevam as moradias para protegê-las das inexoráveis enchentes. Os oito ambientes eram amplos e deveriam ter no mínimo uns duzentos metros quadrados. Em um dos quartos foi instalado um rádio. Havia gerador elétrico e ferramentas suficientes. Um aquecedor de água a gás abastecia os banheiros e cozinha, e quatro caixas d’água forneciam água potável.
Uma plantação de álamos, outra de salgueiros e um arbusto ocupavam a reduzida porção de terra cultivada. Era preciso limpar o restante. Os arbustos com espinhos cresciam à vontade e impediam adentrar a mais de quinhentos metros do rio.
Outro grupo, menos numeroso, percorreu o mesmo itinerário no frio da madrugada. Tinham medo em vez de estar ansiosos. Alguns foram levados, algemados e com os rostos cobertos, em uma caminhonete, com vários beliches, cujo interior não era visível pelo lado de fora. Outros, em um caminhão coberto com uma lona grossa verde. Quando chegaram a uma área descampada junto ao rio, dava para ouvir latidos de cães e barulho de armas. Mandaram que subissem em uma embarcação descoberta e os esconderam com uma lona. Diante de qualquer movimento, chovia paus em suas cabeças.
Foram trancados na segunda construção, menor e mais rústica do que a anterior. Suas paredes externas eram de zinco e a parte de baixo, delimitada pelas palafitas, tinha sido fechada com alvenaria para hospedá-los. Todas as noites eram levados um a um, por caminhos escuros de terra iluminados por lanternas, para tomar banho na casa maior. Apesar das difíceis condições, celebraram quando os deixaram a sós naquele recinto insalubre, no qual os guardas não queriam permanecer. Pela  primeira vez, puderam falar sem restrições. Dessa forma, deram pela falta de um deles. Chamavam-no de El Topo, mas ninguém sabia seu nome.
A última a chegar foi La Vieja. Era chamada assim porque tinha cinquenta e dois anos. Diferentemente dos outros, ela fora trazida sozinha. Ao chegar à ilha, pôde ver a placa de madeira onde se lia “O silêncio”. Ali passaram um mês os últimos reféns sequestrados que restavam, em setembro de 1979, do grupo de trabalho da Escola de Mecânica da Marinha.

UOL / REVISTA SAMUEL